Palavras da Salvação.
Do Nascimento, Capítulo Dois:
¹Do ventre Dela o Homem emergiu, sangrando a Mãe sem cautela, de pura sede o Homem viveu e consumiu, e Dela o Homem se alimentou. Bela e Graciosa, a Mãe Terra alimentou Seus Filhos ao custo de Sua própria Carne, de Seus próprios Pulmões, e de Suas próprias Tripas. ²Bela e Graciosa, a Mãe deu ao Homem a Sabedoria, e o Homem a utilizou e alcançou as Estrelas. ³Promessa feita à Mãe, o Homem há de voltar ao Teu Seio, pois da Terra vindes, e para a Terra voltarás, como a Mãe disse ao ver Seus Filhos partirem entre as luzes.
Oremos, que a Salvação da Mãe nos purifique e nos leve de volta ao Seu lado.
Ore...
A voz pregadora foi cortada de forma abrupta, interrompida pela mão de Leone trocando a frequência do rádio com um resmungo. Abaixo dela veio um protesto de Riel, que estava sentado no assento inferior do cockpit, jogando o corpo para a frente e tentando olhar para cima. Ele agitou o punho fechado, e Leone o ignorou. Fechou os olhos e respirou fundo, pensando que a última coisa que ela precisava ouvir naquele momento era a pregação de um maluco qualquer sobre um planeta que nem sequer devia existir. Levou a mão à lateral do capacete, tocando no comunicador. Passou a língua nos lábios ressecados e falou com a voz rouca:
“Sincro em cinco. Sub em oito.”
Encostou a cabeça na traseira do assento, sentindo o impacto dos cabos se conectando ao capacete.
“Sincro em três. Sub em seis”, Riel respondeu, dando o sinal de que estava pronto.
Leone permaneceu em silêncio. Riel orava. Não é como se ela não acreditasse em algo ou alguém, só achava besteira dedicar sua vida a isso.
“Sincro em um, sub em quatro”, a voz de Riel soou duplicada. Era um dos efeitos pré-sincro.
“Bocal?” Era comum pilotos sentirem fortes enjoos e acabarem vomitando dentro do capacete durante o Sincro.
“Não. Valeu.”
Antes que pudesse responder, a mente de Leone se dividiu em um milhão. Podia sentir cada pequena peça da máquina que pilotava. Podia sentir a existência de Riel logo abaixo dela, e dos outros pilotos próximos. O enjoo foi rápido, e logo sua mente voltou a ser uma só. Conseguia perceber a presença de Riel no fundo de sua mente, e a sua própria presença por trás da máquina que servia como abrigo para sua mente. Quando entram em Sincro, os pilotos conseguem se comunicar sem palavras, mas não perdem a individualidade. É como se duas mentes ocupassem o mesmo corpo, mas ainda existissem em corpos separados que operam as alavancas do corpo principal. Eram unidades de processamento vivas que alimentavam o cérebro da máquina que pilotavam.
Moveram os dedos da mão gigantesca que controlavam em união. Polegar frontal, indicador, médio, anelar, mínimo. Testes de manipuladores, OK. Propulsores dorsais, OK. Propulsores inferiores, OK. Armas destravadas. Câmeras 1, 2, 3 e 4 funcionais. Sensores funcionais. Núcleo subespacial liberado.
Leone desejou que os braços mecânicos conectados ao hangar do cruzador onde estavam a bordo soltassem sua máquina, e assim foi feito. Várias outras máquinas se soltaram em sequência, uma fileira de seis formas grotescas e encurvadas que lembravam remotamente um humanoide com pernas curtas, quase vestigiais, e braços longos e grossos de músculos artificiais expostos foi delicadamente empurrada para a frente e flutuou, livre das amarras da gravidade no espaço, sem peso algum apesar dos seus doze metros de altura. A grande cabeça cobria parcialmente o tórax, servindo de escudo para a área do cockpit onde os pilotos ficavam.
“Sub em um”, falaram em uníssono.
As máquinas se ativaram por completo, com seus seis olhos luminosos na escuridão do vácuo brilhando como estrelas vermelhas. O anel de metal em suas costas vibrou e pareceu se desfazer em névoa, espaço se compactando, matéria perdendo forma e a física sendo violada.
Com um baque, o universo acabou. Uma linha branca ao redor ditava o horizonte de tudo, com qualquer coisa fora dela sendo o nada.
“Trajeto sub iniciado, vamos chegar ao destino em dez segundos. Armas a postos!”, a voz vinda da unidade-líder soou na mente de todos os pilotos. Lanças, maças e espadas foram erguidas. Uma ou duas máquinas carregavam armas balísticas, mas todas traziam equipamento de combate corpo-a-corpo consigo.
“Três.”
Leone firmou a pegada da lança, enquanto Riel focava nos visuais.
“Dois.”
Se aproximaram rapidamente da linha do horizonte de tudo.
“Um. Que a Terra os proteja.”
O universo voltou a existir. Clarões de estrelas e explosões receberam o esquadrão, que não perdeu tempo e se lançou no combate. Riel esquivou de uma estocada e Leone cravou a ponta da lança no tórax da máquina inimiga. Um pistão empurrou com força explosiva a ponta da lança ainda mais fundo no metal, atravessando o cockpit e os corpos dos pilotos inimigos. Recuaram antes da explosão, empalando outra máquina no caminho. Lançaram-se para baixo, usando o oponente como escudo para as armas balísticas. Uma máquina aliada veio logo atrás e disparou um projétil fragmentado, alvejando dezenas de alvos e causando confusão o suficiente para outro colega partir três armaduras ao meio com a lâmina superaquecida.
Sentiram um eco. Um dos seus havia caído. Sem tempo para pensar, avançaram com os escudos já incandescentes pelo fogo inimigo. A máquina ao lado perdeu o escudo e o braço, mas continuou seu avanço feroz e agarrou a cabeça de um inimigo, lançando-o contra os outros e fazendo uma abertura em suas defesas. Foi perfurado por quatro oponentes e explodiu. Sem tempo para pensar. Só restava a colônia.
Quando tocaram na parede externa da colônia, apenas quatro restavam. O único com armas balísticas disparava em direção do batalhão inimigo de forma desesperada. O líder fincou sua lança no metal. O anel em suas costas brilhou e se distorceu.
“Sub em cinco.” Sua voz estava trêmula.
As outras máquinas ativaram seus subs ao mesmo tempo. Uma lança foi arremessada e arrancou o braço esquerdo de Leone. Riel manobrou de forma cautelosa, tentando não quebrar a formação.
O universo acabou mais uma vez. Dessa vez levavam um imenso pedaço da colônia consigo. A força combinada de quatro máquinas em sub era o suficiente para deslocar um pedaço esférico de sete quilômetros de diâmetro e isso era mais do que eles precisavam, mas preferiam pecar por excesso. Do outro lado a colônia ruiu rapidamente com a remoção repentina de um pedaço tão grande da sua estrutura. Isso era problema de quem estava lá dentro.
Leone se permitiu suspirar. As mãos finalmente soltaram os controles, trêmulas. A operação durou apenas sete minutos, mas a sensação era de que uma eternidade havia se passado.
“Sera, Yu, Calisto, Gio.” Disse em sua mente. Eram os nomes dos camaradas que tombaram na missão.
“Sera, Yu, Calisto, Gio.”, os outros pilotos repetiram.
“Que a Terra os receba.”, falaram ao voltar para o universo visível. Isso ainda deixava um gosto amargo na boca de Leone, mas era a crença deles. Não iria fazer essa desfeita.
As máquinas que ainda tinham braços funcionais prenderam os arpões do cruzador no pedaço roubado da colônia e voltaram para a embarcação. Riel sentiu o puxão da sua consciência de volta ao isolamento do seu corpo. Era o término do Sincro. Queria massagear as têmporas, mas o capacete não permitia. Após as máquinas serem apropriadamente resfriadas com jatos de gás, foram levadas para dentro do cruzador. Os pilotos desligaram os sistemas e foram lentamente removendo os cintos de segurança e abrindo a porta do cockpit. Riel saltou para fora da máquina, fazendo um sinal positivo em agradecimento para a equipe de reparos. Apoiou-se em um suporte e esticou as pernas, sentindo a circulação voltar. Logo viu Leone flutuando atrás dele.
“Como é bom esticar as pernas. Mas acho que é meio insensível te falar isso.” Baixou o olhar.
“Não é como se eu estivesse usando-as em gravidade zero, relaxa.” Leone sorriu. Suas pernas ficavam presas juntas por faixas nos calcanhares e joelhos. Havia perdido o movimento delas em um acidente há seis anos, quando ainda era adolescente. Era algo relativamente fácil de resolver e as soluções variavam desde tratamentos com nano máquinas até a substituição por pernas biomecânicas, mas é claro que Leone não fazia parte da casta que tinha acesso a esse tipo de tratamento. O mais próximo da normalidade em questão de locomoção para ela era viver em ambientes sem gravidade, onde suas pernas não eram essenciais. Se movimentava horizontalmente, com as pernas unidas como se fossem a cauda de um peixe. Se ainda soubessem o que era, provavelmente diriam que ela se parecia com uma sereia.
Encostaram as mãos na esteira na parede e foram levados em direção da saída do hangar. As portas grossas e pesadas se abriram com um chiado, e logo se encontraram em uma sala pequena. Lentamente o ambiente foi pressurizado e higienizado e puderam enfim partir para as áreas comuns.
Riel tirou o capacete, revelando o rosto redondo e liso. A cabeça raspada e salpicada de gotículas de suor brilhava sob as lâmpadas brancas. Leone fez o mesmo e deixou a trança curta flutuar. Enfim apertou a mão do parceiro e sorriu.
“Mais um dia vivos", comemoraram.
Tiveram uma hora para suas atividades comuns pós operação: comer, orar pelos que caíram, cuidar dos ferimentos. O tempo passou rápido e todos estavam reunidos na sala de comando. As grandes janelas davam uma visão panorâmica do espaço lá fora, eclipsado pelo pedaço de colônia roubado pelos pilotos. Diversas máquinas operárias entravam e saíam da colônia. Algumas traziam computadores, outras apenas juntavam corpos asfixiados em um aglomerado para serem cremados depois. O líder da operação conversava com o comandante.
“Tem certeza de que acertamos dessa vez? Perdemos quatro pilotos e dois Granges.” O líder, Telo, perguntou. Era um homem alto até demais, mesmo para os padrões de quem nasceu e cresceu no espaço. Como todas as pessoas que eram originárias do espaço, Telo também era geneticamente projetado para ter um corpo com mais massa muscular e ossos mais densos e isso se refletia no monólito em forma de homem que comandava a equipe, com seus quase três metros de altura e aparência intimidadora.
“Absoluta. Já recebemos confirmação de que o pedaço que vocês trouxeram tem uma Máquina dentro.” O capitão Josia afirmou, cruzando os braços e esticando o pescoço para olhar Telo nos olhos.
Leone voltou os olhos para o pedaço de colônia ancorado à nave. Uma Máquina era uma tecnologia teoricamente impossível de existir, capaz de violar mais leis da física do que os motores subespaciais já faziam. Não era uma máquina, era uma Máquina, com M maiúsculo. Uma entidade.
Sua distração foi interrompida pelo sinal do comunicador. Era um dos operários.
“Permissão para feed de vídeo, senhor.” O piloto disse rapidamente. Sua voz parecia levemente distorcida, como se estivesse no subespaço, e ele parecia não conseguir conter a emoção.
“Concedida.”
A grande tela do comando central da nave exibiu as imagens da câmera da máquina operária. O grupo de pilotos observou, boquiabertos.
Devia medir uns dezesseis metros da cabeça aos pés. Era perfeitamente proporcional a um corpo humano, diferente dos brutais Granges que eles pilotavam e de outras máquinas mais próximas à forma humana, mas que ainda assim não o faziam com tamanha perfeição. Milhares de cabos estavam ligados a várias partes do corpo da Máquina e uma quantidade imensa de scanners e sensores a rodeava em um laboratório esférico. Parecia que os cientistas daquela colônia não tinham criado aquela Máquina e estavam tentando entender a sua natureza. Parecia orgânica, mas era obviamente feita de metal. As formas, curvas e pontas eram milimetricamente simétricas, provavelmente até seus átomos eram alinhados de forma perfeita. Era algo que ia além das mãos da humanidade. Não tinha olhos ou quaisquer outros equivalentes a uma câmera, sua face era uma superfície lisa e tão escura quanto o vazio do espaço. Nem mesmo a luz das lanternas parecia criar um reflexo naquele corpo imaculado e impossível. Era tão perfeito que a própria gravidade parecia deslizar por sua forma.
“Algum log recuperado?”, o capitão quebrou o silêncio.
“Aparentemente ela foi encontrada em um setor nulo. Durante uma missão de extermínio de feras estelares o sinal dela de repente apareceu no radar dos pilotos, e logo ela foi levada para a colônia.” O operário parou por um segundo, lendo o restante do log. “A composição dela não bate com nada encontrado na natureza, nem criado em laboratório. É uma existência que não existe, segundo um dos pesquisadores.”
O sorriso do capitão era tão grande que até seus molares podiam ser vistos com clareza.
“Traga a Máquina a bordo. Assim que descobrirmos como embarcar nela, um dos nossos vai fazer um teste.”
O silêncio tomou a sala. A temperatura do ar caiu. Os pilotos se entreolharam, ansiosos. Queriam pilotar a Máquina, mas seus instintos diziam que deviam manter distância daquela coisa. Ela não era natural. Não era humana. Não era daqui, nem de lugar algum. Ela não era.
Leone mordeu o lábio inferior. A câmera continuava focada na cabeça da Máquina.
Ela jurou que pôde ver seus próprios olhos na escuridão do rosto sem feições. Era descrente, mas levou a mão ao pescoço e pediu piedade à Terra.