Capítulo 2: Os olhos Dela
A Máquina foi acomodada no centro do hangar. Era relativamente maior que os Granges ao seu redor. Observá-la de perto era um desafio sensorial: as cores pareciam erradas, a Máquina não produzia uma sombra nem reflexos, e sua própria existência parecia escapar dos sentidos se estivesse na visão periférica. Era difícil até mesmo descrever com precisão os detalhes dela, apenas suas proporções humanas. Era morna ao toque, mas as mãos ficavam frias com o contato, mesmo dentro das luvas. Era lisa? Não, aveludada, talvez. Era mais como se estivesse tocando um líquido. Os pilotos não conseguiam entrar num acordo. Alguns até diziam que ela era maior ou menor do que o reportado pelos sensores de análise do hangar, que também entregavam informações conflitantes.
Foram três longas horas de inspeção, mas ninguém encontrou algo que se parecesse com uma trava ou abertura para um cockpit. O desânimo logo tomou conta da tripulação, que decidiu continuar as inspeções no dia seguinte. O relógio da nave apontava que já havia passado das onze da noite, e todos precisavam de um bom descanso antes de retomar suas atividades no dia seguinte. No espaço não há dia e noite, mas o relógio biológico é uma constante que não pode ser ignorada. Sem uma rotina disciplinada, o corpo logo começa a falhar.
Os nove pilotos se reuniram brevemente no refeitório, onde partilharam de uma refeição rápida e quase sem gosto. Ninguém parecia afim de conversar. Despediram-se uns dos outros e foram para seus dormitórios.
Leone trancou a porta atrás de si. Tirou as faixas que mantinham as pernas juntas e se despiu. Entrou no lavatório e abriu um gabinete aquecido, deixando o suave vapor de água tocar seu rosto. Pegou uma das toalhas quentes e limpou o corpo. Fitou o espelho. Parecia exausta. Era comum perder companheiros em operações como aquela, mas essa perda nunca ficava mais leve. Observou as gotas de água da toalha alojadas no sulco da sua clavícula, o olhar desviando para os ombros. Precisava trabalhar na musculatura dos superiores, estava negligenciando aquilo há tempo demais. Faria os exercícios bem cedo no dia seguinte.
Terminou de se limpar e se vestiu novamente, flutuando para a sua cama. Apoiou as costas no colchão preso à parede e prendeu as pernas e a cintura à estrutura, ficando fixa na cama. Era o único jeito de dormir em segurança no espaço, ou então o corpo sonolento flutuaria a esmo pelo alojamento até bater em alguma coisa.
Cerrou os olhos e pensou novamente nos colegas mortos. Sera, Yu, Calisto, Gio. Com eles, já haviam perdido doze colegas desde que a tripulação havia sido formada. Todos ali sabiam dos riscos, afinal eram um grupo criado para atacar as facções inimigas de forma abrupta e rápida, matar quem deveria ser morto, roubar o que deveria ser roubado e fugir de volta para casa. Se fosse necessário um sacrifício, ele seria feito. A causa era uma prioridade.
Havia um certo conforto em ter um parceiro pilotando uma máquina com você. Era como se alguém segurasse sua mão caso fosse hora de partir. Ela se perguntava se algum dos colegas mortos pensava assim também. Todos foram em pares e partiram em pares.
Ajeitou a cabeça no apoio, enfiando os braços por dentro do cobertor. Não adiantava pensar nisso.
Horas se passaram e o sono não veio. Saiu da cama e decidiu tomar um ar. Ou não, no caso. Vestiu seu traje de piloto, encaixou o capacete até ouvir o chiado da pressurização e foi para o hangar.
A Máquina ainda estava lá. A posição em que se encontrava a fazia parecer que estava deitada em uma poltrona reclinável. Agora, sozinha, Leone conseguia enxergar melhor as formas do corpo. Delicadas linhas corriam por toda a estrutura, similares às linhas das fibras que compunham os músculos artificiais de outras máquinas. Ainda assim, eram tão perfeitamente alinhadas e bem-construídas que a comparação parecia até um insulto. Mesmo sob a luz fraca das lâmpadas noturnas do hangar, a Máquina parecia não produzir sombras, nem era encoberta por elas. Era como ver um recorte colado sobre uma fotografia.
Flutuou até a cabeça da Máquina. Já haviam tentado isso antes, mas tocou com as pontas dos dedos na face sem feições. A estrutura ondulou como se fosse líquida, para seu espanto. Será que algum tipo de condição tinha que ser atendida para isso acontecer? O cockpit devia ser na cabeça, protegido por uma membrana que podia mudar seu estado físico para proteger o piloto e permitir sua passagem entre o interior e o exterior da Máquina.
Precisava registrar aquilo. Levou a mão ao capacete, buscando o canal de voz que permitia gravações de memorandos.
Seus dedos tocaram os cabelos. Afastou a mão, assustada. De repente, sentiu um frio intenso. Estava nua. Olhou ao redor, levando as mãos à boca e o nariz. O hangar era uma área de acesso ao exterior da nave, protegido apenas por um conjunto de portas deslizantes que se abriam para permitir a entrada e saída de naves menores e de máquinas. Não havia ar ali.
Sentia os pulmões cada vez mais fracos. Ardiam e imploravam por ar. Ergueu os olhos lacrimejantes para a Máquina, como se soubesse que aquilo havia sido obra dela. Tentou escapar para a saída do hangar, lutando contra seu próprio corpo.
A escuridão sem rosto da cabeça da Máquina havia mudado.
Ela tinha os seus olhos.
Os braços perderam a força. O frio extremo do espaço castigava sua pele exposta. Olhou uma última vez para o imenso par de olhos que fitavam seu corpo miúdo. Abriu a boca, deixando o que lhe restava de ar escapar.
Respirou fundo, voltando à vida. Olhou ao redor, procurando a Máquina, mas tudo que viu foi seu alojamento. Levou a mão à testa, sentindo os cabelos molhados. Seu corpo estava completamente encharcado de suor. Olhou para o relógio acima da porta. 4:55 da manhã. Aproveitou os cinco minutos antes do despertador tocar para todos os tripulantes do turno diurno e tomou outro banho.
Sentou-se à mesa do refeitório. Shel, outra colega da equipe de pilotos, sentou-se diante dela.
“Você tá acabada”, disse. Shel era conhecida por sua honestidade brutal. “Não dormiu?”
Leone demorou para responder. Ela havia saído do alojamento e fora ao hangar... não? Abriu a boca para falar, mas outra figura a interrompeu, sentando-se ao seu lado.
“Dia, moças.” Sam grunhiu de forma seca. Não falou muito, já que o seu café da manhã parecia mais interessante.
“Sério, Leo” Shel continuou após fazer um aceno de cabeça para Sam. “Você tá bem?”
“Acho que sim. Foi só uma noite meio mal dormida.”
“Percebi. Talvez você precise de uns calmantes, sei lá. Eu tomo alguns pra dormir bem.”
“Apenas oito guardando o forte agora, né?” a voz de Juli se fez ouvida. Ele prendeu a base magnética de um banco em frente à ponta da mesa e se sentou. “Precisamos ficar de olhos abertos. Enquanto essa operação não for dada como concluída, não vamos voltar para a base. E sem retorno pra base, sem novos pilotos e máquinas.”
“Acho que damos conta.” Leone forçou um sorriso torto.
“A pior parte já passou.” Telo comentou, da outra ponta da mesa. Para alguém tão grande, ele era muito bom em se fazer passar despercebido. “Fizemos a incursão, pegamos a Máquina, voltamos com ela. Tudo que temos que fazer por enquanto é manter nossas patrulhas ao redor da nave para garantir que nenhum bisbilhoteiro das colônias tenha seguido nosso rastro pelo subespaço.”
É por isso que Riel não está aqui, Leone concluiu. O Sincro não era necessário para patrulhas, os controles manuais eram mais que suficiente. Ele devia estar lá fora com os outros três. Com apenas quatro Granges, as patrulhas precisavam ser minuciosas.
“Bom!” Telo se levantou, limpando a boca com um guardanapo. “Mais quinze minutos, pessoal. Depois se vistam e vamos todos para o hangar. Alguém tem que conseguir entrar naquela coisa hoje.”
Leone assentiu, mordendo o pão. A cada mastigada ele parecia mais pesado em sua boca.
Prendeu as faixas nas pernas com a ajuda de Shel e vestiu o capacete. O chiado que selava o ar dentro do traje soou mais grave que o normal.
Estavam de volta ao hangar, encarando a Máquina. Continuava sendo difícil descrevê-la com precisão. Parecia que ela tentava manter todas as formas como era percebida por diversos observadores ao mesmo tempo. A única constante era a superfície lisa e negra que compunha sua face. Vários operários da equipe de reparos estavam no local também, fazendo com que fosse ainda mais complicado traçar uma percepção definitiva daquela coisa. Alguns diziam até que ela tinha quatro braços. Leone tentou repetir o mesmo procedimento da noite anterior e tocou na face da Máquina. Era uma superfície sólida.
“Meio difícil de descrever ela com esse... cabelo? Eu acho?” Juli colocou as mãos na cintura, balançando a cabeça.
“Cabelo?” Sam virou para ele. “Que cabelo?”
O grupo se voltou para Juli. Ele gaguejou, jogando as mãos para o alto.
“Cabelo! Compridão, tipo... Até o meio das costas! Prateado!”
Olhou mais uma vez para a Máquina.
“Não, espera. É mais pro meio das costas. E verde. Bem curtinho.”
“Juli.” Telo se aproximou.
“E os braços... Eles são... Compridos, até. Engraçado, achei que essa coisa fosse mais humana...”
“Juli!” As mãos grandes de Telo chacoalharam o rapaz miúdo pelos ombros.
Juli riu, não entendendo o motivo do safanão. Um pequeno círculo vermelho se formou no visor do seu capacete.
“Ah. Isso é m-meu?” Perguntou, com um misto de sangue e fluído cerebroespinhal vertendo pelas narinas e olhos.
As portas da ala médica se abriram com um estrondo. O grupo correu para dentro, liderado por Telo com Juli em seus braços. Pelejou para abrir as travas do capacete com as enormes mãos e foi interceptado por Shel, que tirou o capacete do colega rapidamente.
Sabrina, a médica responsável por aquele turno, abriu caminho entre os pilotos, preocupada. Ergueu as sobrancelhas grossas e olhou para o quinteto.
“Isso é uma piada?”
Voltaram os olhares para Juli. Ele estava completamente normal, sem sinal de sangue ou fluidos. O próprio rapaz parecia desconcertado, como se também tivesse sido vítima de uma brincadeira de mau gosto. Tirou o traje espacial e as roupas por ordem da médica, que examinou cada centímetro de seu corpo. Estava intacto.
Quando voltou à sala de comando, Juli se deparou com uma discussão acalorada entre seu líder e o capitão da nave. Telo erguia a voz e Josia tentava falar mais alto. Leone estava sentada em silêncio num canto da sala, olhando para o espaço lá fora. Sam e Shel conversavam entre si.
“Eu dou as ordens aqui!”, Josia vociferou. “Nós vamos levar aquela Máquina para nossa colônia, mesmo que vocês não tenham a capacidade de descobrir como ela funciona!”
“Você não entende! Ela é um perigo pra todo mundo!” Telo bateu as mãos sobre a mesa. “Não dá pra pilotar aquilo. Não dá pra controlar. A gente sequer consegue entender a forma dela! E parece que ela não quer ser percebida.”
Josia ficou em silêncio por alguns instantes. Deu as costas para Telo.
“Vocês não conseguem compreender a forma dela?” balbuciou.
Olhou para os pilotos, com um sorriso no rosto.
“Eu vi os olhos Dela.”
Leone saiu de seu transe e olhou para o capitão. Abriu a boca e falou sobre os olhos. Sua voz não saiu. Algo em sua visão periférica puxou sua atenção.
“Pessoal”, ela disse, apontando para as janelas. “O que houve com o pedaço da colônia que trouxemos aqui?”
Todos correram na direção de Leone. Onde antes estava o pedaço da colônia havia apenas os cabos dos arpões soltos no vácuo do espaço. Sentiu a presença da Máquina naquela sala, mesmo sabendo que era impossível que ela estivesse lá dentro.
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